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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Despedida

Esta é a primeira e última vez que mencionarei este assunto. Guarde contigo como um segredo, não comente com ninguém nem mesmo comigo.  Após ler isto continuaremos como estamos, sem show nem choro, sem lamentos ou preocupações. Deixaremos a vida seguir e os acontecimentos também seguirem, conforme a vontade Divina.

Tenho um curto tempo de vida. Sim, minha vida está encurtada muito mais do que eu um dia poderia imaginar. Não há remédio que possa curar, o que praticamente nenhum exame foi capaz de detectar. Eu mesmo cheguei a pensar que não passavam de simples devaneios, mas na verdade, é muito mais que isso.  Nem o mais conceituado dos doutores do mundo pode dar solução ao que tenho: minha mente está em processo de degeneração. Não, não é nada cerebral, não é nada físico. Graças a Deus essa parte está intacta, e parece que durará o tempo que for preciso. Todos os outros exames me atestaram boa saúde, o que por um lado é bom. Mas talvez se algo a mais houvesse encurtaria o físico antes que o mental partisse de vez. Não sei...

Tempo exato? Só mesmo Deus sabe. Podem ser dias, semanas, talvez alguns anos. Tudo que posso fazer é esperar, e tentar ir levando minha vida conforme posso, tentando não afetar a vida das pessoas a meu redor o máximo de tempo possível. Não pretendo deixar de fazer nada, continuarei trabalhando, estudando, viajando, vivendo, pois isso também pode me ajudar a alongar um pouco o tempo, e retardar o colapso total.

Não fique triste, guarde contigo tudo o que já disse, guarde as lembranças de tudo que conversamos, sentimos e também o que vivemos. E viva, siga em frente sem tristeza alguma, apenas com tudo de bom que existe na vida. Você merece. Acontecerá um dia que não mais responderei se acaso chamares. Não será porque não quero, nem necessariamente por não poder... o mais provável é que nesse dia eu nem saiba como. Mas continuará vivendo em mim e eu ti enquanto o sangue circular em minhas veias, pois isso é o que podemos deixar para o mundo, nossa marca nas pessoas que de alguma forma tocamos, as conhecendo ou não. Pode ser que você nunca tenha me visto, mas o que escrevi de certa forma te tocou, te dá o direito de dizer que conhece ao menos um pouco de mim.

A partir desta linha, este assunto está guardado, selado e lacrado e não mais mencionado. Nunca mais. Sigamos vivendo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Morte do rouxinol dourado

Não sei ao certo quando ele nasceu. Sempre que saía o via ali, no alto daquele galho cantarolando feliz. A princípio não identificara direito que pássaro era, nem tempo tinha para isso tão corrida era minha manhãs.

Em meu retorno, cheguei algumas vezes a procurá-lo, mas nunca o achava no fim do dia. Mas ao amanhecer ali estava ele, com suas penas douradas a cantarolar sua melodia. Nem sempre conseguia ouvi-lo tamanho barulho da rua, mas via que ele cantava mesmo assim. Procurei a respeito e descobri que era um rouxinol de penas douradas, raro naquele ambiente. Deveria ter algum ninho por perto.

E assim ele passou a fazer parte de minha rotina: todas as manhãs ao acordar, ia até a janela e ficava a observá-lo ao longe por alguns minutos. Ao sair de casa, dava uma olhada para árvore e o via em meio ao ofuscante sol. E seguia o meu dia, muitas vezes enquanto estava no ônibus ficava imaginando se um dia conseguiria ouvir seu canto.

Havia dias que amanheciam chuvosos e mesmo assim ele estava no topo da árvore, com toda sua bela "penagem" encharcada, mas sem sequer se importar, estava ali com seu imponente cantar.

Em meio ao barulho dos carros, sob o sol quente ou chuva torrencial, todas as manhãs ele estava ali cantando e isso me motivava a não desistir, não me deixar vencer pela preguiça ou problemas e continuar meu caminho.

Não sei quanto tempo se passou, talvez semanas ou meses... Um dia acordei e não o vi mais. E o mesmo se repetiu nas semanas que seguiram. Pode ser que ele tenha encontrado outra árvore longe do alcance de meus olhos, mas dentro de mim eu senti que não era bem isso. Seu tempo tinha acabado.

Talvez por causa dessa sensação, misto de tristeza e gratidão pela inspiração que ele me dera, um dia desses pensei que o vira, voando longe, e pela primeira vez escutei seu canto, que para meus ouvidos parecia uma bela canção de despedida.

Voe amigo pássaro, voe para onde seu canto é preciso, mesmo que nunca seja ouvido, você nunca deixa de cantar. Mesmo depois que seu tempo acabe.




quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Zé Cochilo

Recebi esse texto de um amigo e gostaria de compartilhar com vocês para que reflitam sobre o assunto... Quem são os grande culpados?


A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo -, foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.


Prezado Luis, quanto tempo.

Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão e que por isso o sapato sujava.

Se não lembrou ainda, eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né Luis?
Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruím o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luís?
Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né), contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou.

Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana, aí não param de fazer leite. Ô, os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?
  Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que     devia. Nossa! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra, né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.

  Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luís, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelos fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudilo.

Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu    levo o leite de carroça até a beira da estrada, onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luís, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande, né?

  Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí né?

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luís? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo, aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foram os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.

  Tô preocupado, Luís, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

  Eu vou morar aí com vocês, Luís. Mas fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem plantar, nem cuidar de galinha, nem porco, nem vaca, é só abrir a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.
Ah, desculpe, Luís, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.

(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros.
A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental
é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)



O Ser nasce imaculadamente puro, mas a sociedade o corrompe.