Opiniões, comentários e assuntos do momento, diretamente da cabeça de um escritor errante porque não para no meio do caminho e também erra.
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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
Voz
No princípio nada havia. Ao contrário da criação do mundo segundo Gênesis, nem espírito pairando sobre as águas existia, apenas a imensidão vazia de um pensamento nulo.
Ali estava eu. Como canta Zeca Baleiro na música Telegrama, "(...)Eu tava só, sozinho! Mais solitário que um paulistano(...)". Talvez seja uma das piores sensações que existem: estar só mesmo acompanhado. Mesmo assim estava bem, nada via, nada ouvia, nada sentia.
De repente, ouço no fundo um leve cochicho, como uma voz que almeja ser ouvida. Concentrado, tento entender as palavras, que parecem ser dirigidas a mim. Pouco a pouco o som parece mais alto e claro. Escuto perfeitamente sua voz e respondo, não sei ao certo se mentalmente ou verbalizando. E o que era um simples cochicho vindo de não sei onde, passa a ser uma presença constante em vários momentos.
Ouvir me basta, a sensação de ser ouvido também. Não questiono de onde vem, meu lado racional tem mais com que se preocupar do que uma "voz -ouvinte" desconhecida. Vida que segue e "esse apoio" vinha bem a calhar.
Passam-se dias, meses ou anos. Como que vindo de um velho rádio, percebo que já não ouço a voz com a mesma frequência, nem sou ouvido também. Busco, procuro formas de como outrora escutar, mas a intermitência passa a ser regra. Diante disso, passo não mais querer ouvir. Quero saber a fonte.
Externamente não encontro sequer resquício algum. Busco um momento de silêncio e começo a ir cada vez mais fundo na minha mente. Visito lugares já esquecidos, lembro de momentos alegres, tristes, momentos que me fizeram crescer, mas que já não me recordava. Me vejo como em uma grande sala, com caixas empoeiradas de lembranças. Mas nada ouço ainda, nenhum som, nada parecido com o que procurava no início.
Em meio aquele espaço imenso, vou até um canto mais isolado e ao mesmo tempo mais acessível e começo a ouvir aquela voz, novamente como um leve cochicho. Tento falar, pedir que seja mais alto, mas não sou ouvido. Sem perceber tropeço em uma caixa de aspecto até novo comparado com outras tantas ali dentro.
Tento puxar a caixa para fora da passagem, mas seu peso me impede de movê-la. Sento ao seu lado, exausto do esforço de movê-la, e fico a observando. Nenhuma identificação, nada que possa me fazer suspeitar seu conteúdo. Abro e nesse momento, a voz que era um simples cochicho fica mais alta e se dirige diretamente a mim, pedindo que pare, que estava de volta, que eu poderia parar de vasculhar. Mas eu não havia entrado ali para escutar a voz e sim descobrir sua origem.
Ignoro a outrora agradável e agora tão nefasta voz e começo a esvaziar aquela caixa. Coisas velhas, pesadas e sem serventia, que só estavam atravancando o caminho de minha própria mente, meus próprios pensamentos. O desespero daquela voz que falava comigo era assustador, mas nem tanto quanto o que eu tirava daquelas caixa de mentira e ilusões.
E cada coisa ruim / triste que saía dali de dentro, sumia ao entrar em contato com as lembranças boas que estavam ao redor. No fim, aquela voz já estava rouca e sem esperança. Diante da caixa vazia, e já retirada do caminho, me dirigi pela última vez para aquela voz:
- Me trouxe a muito lixo, mas ao procurar tanto limpei meu caminho também. Aprendi que no fim, você não existia... Nunca existiu, nunca quis existir.
E ali calou-se para não mais se pronunciar. Porque nunca se pronunciou. Nunca existiu.
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