Manhã chuvosa. O ar úmido entrava pelas narinas e de certa forma eu já sentia que algo acontecia, mas não quis me preocupar com algo desconhecido. Em algumas horas o sol saiu dentre as nuvens e tudo parecia melhorar pouco a pouco, sob minha ignorância absoluta do que acontecia em outro extremo da cidade. Ou de outra cidade, outro país, eu já nem sabia ao certo onde. O fato é que a notícia caiu sobre mim como uma bomba, trazida por alguém que nunca fizera parte de meus dias, mas que viera como portador intrometido de tão más notícias.
Ainda assustado com a forma ríspida que uma série de palavras desnecessárias e sem fundamento, me foram ditas por esse portador intrometido, em minha mente enxerguei toda a cena: Em alguma parte do universo jazia o anjo.
Suas asas, que tantas vezes o levaram para longe e possibilitaram seu retorno, desintegraram como se o calor do próprio universo o queimasse. Suas cascas, tantas usadas ao longo de décadas, manifestando-se em lugares e ocasiões diferentes, esfacelaram como se de areia fossem. Desapareceu e nem mais sua aura se sente.
Não foi morto. Quis morrer, quis partir para não mais voltar. Eu, que o vira em tantas frentes, em tantas batalhas longevas, agora olho e vejo escudo e espada ao chão. Seu elmo está vazio, perdeu todo o fulgor de outrora, seu brilho que me inspirava a seguir. Seguir... Não é fácil, não depois da enorme pancada que recebi, mesmo antes de sua morte.
Sinto uma forte dor no lado, e quando olho vejo sua velha lança cravada junto a meu peito. Em meio a cena de caos não sentira quando ela transpassara meu corpo. Fui atingido com a precisão milimétrica que só meu amigo anjo tinha: preciso e profundo o suficiente para ferir sem matar. E agora morrer, não como pessoa que de fato nunca fora para mim, mas como anjo, que sempre me ajudara em todas as batalhas. Me ferindo, morreu em mim, não para mim, e sabia disso. Sucumbiu sem agonizar, sem derramar uma só gota de sangue, desfez-se como se fosse em brasa, no calor de um dia chuvoso.
"(...)O sândalo perfuma o machado que o feriu(...)¹". Da mesma forma dentro de mim, guardo a lembrança dos bons dias e aprendizados. Guardo o perdão que nunca poderei pedir, e o perdão que nunca poderei dar. Se foi o anjo, se foi o companheiro de guerras, batalhas, derrotas e conquistas, mas ao contrário da música, da qual extraí esse verso, não fiquei em mil pedaços, segui e seguirei em frente. A ferida cicatriza, a marca fica, mas eu sigo adiante. Sempre.
Seu elmo, espada e escudo ficarão no campo de batalha, como testemunho de dias gloriosos, que não mais voltarão. Outros virão, continuarei combatendo o bom combate, agora solo, porque assim deve ser. Só assim poderei valorar os dois extremos: vida, minha vida, e morte, seu fim desejado.
Que assim seja
1 Mil Pedaços - Legião Urbana