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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Felicidade Realista – Martha Medeiros

 



A princípio bastaria ter saúde,

dinheiro e amor,

o que já é um pacote louvável,

mas nossos desejos são ainda mais complexos.

Não basta que a gente esteja sem febre:

queremos, além de saúde,

ser magérrimos, sarados, irresistíveis.

Dinheiro?

Não basta termos para pagar o aluguel,

a comida, o cinema, o teatro:

queremos a piscina olímpica

e uma temporada num SPA cinco estrelas.


II

E quanto ao amor?

Ah, o amor…

Não bastam termos alguém

com quem podemos conversar,

dividir uma pizza

e fazer sexo de vez em quando.

Isso é pensar pequeno: queremos

amor todinho maiúsculo.

Queremos estar visceralmente apaixonados,

queremos ser surpreendidos por declarações

e presentes inesperados.

Queremos jantar a luz de velas

de segunda a domingo,

queremos sexo selvagem e diário,

queremos ser felizes assim e não de outro jeito.


III

É o que dá ver tanta televisão.

Simplesmente esquecemos-nos de tentar ser felizes

de uma forma mais realista.

Ter um parceiro constante pode ou não,

ser sinônimo de felicidade.

Você pode ser feliz solteiro,

feliz com uns romances ocasionais, feliz

com um parceiro, feliz sem nenhum.

Não existe amor minúsculo,

principalmente quando se trata de amor-próprio.


IV

Dinheiro é uma benção.

Quem tem, precisa aproveitá-lo,

gastá-lo, usufruí-lo.

Não perder tempo juntando,

juntando, juntando.

Apenas o suficiente para se sentir seguro,

mas não aprisionado.

E se a gente tem pouco,

é com este pouco que vai tentar segurar a onda,

buscando coisas que saiam de graça,

como um pouco de humor, um pouco de fé

e um pouco de criatividade.

Ser feliz de uma forma realista

é fazer o possível e aceitar o improvável.


V

Fazer exercícios sem almejar passarelas,

trabalhar sem almejar o estrelato,

amar sem almejar o eterno.

Olhe para o relógio: hora de acordar.

É importante pensar-se ao extremo,

buscar lá dentro o que nos mobiliza,

instiga e conduz,

mas sem exigir-se desumanamente.

A vida não é um jogo

onde só quem testa seus limites

é que leva o prêmio.


VI

Não sejamos vítimas ingênuas

desta tal competitividade.

Se a meta está alta demais, reduza-a.

Se você não está de acordo com as regras,

demita-se. Invente seu próprio jogo.

Faça o que for necessário para ser feliz.

Mas não se esqueça que a felicidade

é um sentimento simples,

você pode encontrá-la

e deixá-la ir embora

por não perceber sua simplicidade.

Ela transmite paz e não sentimentos fortes,

que nos atormenta

e provoca inquietude no nosso coração.

Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo,

mas não felicidade.


Martha Medeiros  , Montanha-Russa. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Viver é muito perigoso...

 



"Viver é muito perigoso... 

Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... 

Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa... 

O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.


Guimarães Rosa

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Você já amou muito um lugar?

 


“Um conselho: se você amou muito um lugar, não faça a besteira de ir visita-lo. Porque você vai visitar pensando que vai encontrar o tempo, mas o tempo não está mais lá. É melhor você ficar com a imagem da sua cabeça.” Rubem Alves






Quem nunca cometeu tal erro? Quem nunca fez tal coisa? Eu fi-lo e sei que são sábias palavras. 

E do alto de todo meu apreço pela rotina, e por repetições, me é duro dizer que é a pura verdade. Porque no fundo você não amou o lugar. Você amou como se sentiu naquele lugar, naquele tempo, naquela ocasião. Se voltar, nada mais será o mesmo. O tempo é outro, o momento, até você não é mais a mesma pessoa. 

Você volta e espera que se sinta da mesma maneira, mas isso não acontece. O que antes era uma grata surpresa, agora é uma espécie de monotonia, onde você percebe defeitos e problemas que não vira antes, mas possivelmente já existiam. A sensação do desbravamento se desfaz e em algum momento você vai pensar que "da outra vez, foi melhor". E foi, tanto que você "amou", tanto que ficou tentado a voltar e acabou sucumbindo a tentação.

Não vá, deixe na memória. Procure novos caminhos, novas direções. Pode ser que você dê a sorte de ter uma experiência ainda melhor a somar nas lembranças de bons lugares.

Sim, pode ser que retornando a um "lugar amado" você tenha uma boa experiência, talvez a conjunção de fatores te propicie isso, mas é um acaso, uma sorte nem sempre apurada. Se teve essa sorte, volte ao início e não faça a besteira de visitá-lo... A sorte acaba, mas as boas lembranças são eternas.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Foste feliz?

 A bela música que cá coloquei na última semana traz um questionamento interessante: no final do embate (interno) entre o tempo (sempre implacável) e o amor, sendo de fato o fim da nossa vida nesta existência, Deus de seu lugar perguntará: foste feliz?

É algo realmente complexo, tenho certeza que se fosse meu momento, não saberia responder de prontidão, e se o fizesse de bate pronto não seria deveras sincero. Talvez minha resposta fosse: o que é a felicidade, meu Senhor? O que é ser feliz?

Vi durante minha vida, por inúmeras vezes, pessoas que aparentavam feliz, demostravam serem felizes em sorrisos, fotos, palavras, vídeos. Faziam questão de mostrar ao mundo pelas redes sociais uma felicidade que me parecia ser irreal. Algumas, mesmo pessoalmente, me pareciam felizes como nas histórias infantis. Me pareciam personagens de si mesmos.

Não questiono a capacidade de serem felizes, de encontrar a felicidade de alguma forma, mesmo diante de tantas coisas que eu via e vivia ao meu redor. Questiono os personagens, questiono a imagem, os rótulos e a constância de tal felicidade aparente. Pareciam felizes e pareciam ter todos os rótulos socialmente aceitos como "ser felizes".

Conheci pessoas que pareciam ter tudo que era preciso para estarem sempre felizes, mas não aparentavam estar. Vi pessoas que aparentavam estar felizes, mas viviam tomando remédios que me deixavam na dúvida se era uma felicidade real ou química.

Vi tantos com tão pouco,  que não apenas pareciam, mas transmitiam felicidade; outros abastados de motivos e eram realmente infelizes.

Diante de tudo isso, pergunto o que é ser feliz? 

Aprendi que a felicidade não está nas telas, nas fotos, nas imagens ou personagens que criamos para viver. A felicidade está dentro de nós, e mesmo assim é custoso encontrá-la, por vezes está tão fundo que só com muito trabalho a encontramos. A felicidade está no desprendimento. E isso aprendi com muitos erros.

Sim, puro desprendimento de imagens, rótulos e valores vazios. Um ponto em que você não se importa se algo vai aparentar inadequado ou tolo para os outros contanto que seja o que te faz feliz. Desprendimento a ponto de você renunciar a algo que desejaria para ver alguém feliz e ficar feliz de verdade com isso. Ter a empatia de ficar feliz por ver alguém bem, muitas vezes ver alguém seguir um caminho que você gostaria para si mesmo, mas não pode por algum motivo. E ficar feliz por isso. Abandonar invejas, rancores, ser sincero consigo e com os outros. Afastar-se das toxidades, por mais difícil que seja. 

Ser feliz não é um simples ser. É um aprendizado, um caminho de vida, um longo caminho. A felicidade plena só se alcançará realmente no último suspiro de vida, até lá é apenas felicidade em construção.

Após meu último suspiro, quando Deus me perguntar: "Foste feliz?", espero poder responder afirmativamente. Espero ter tempo de vida suficiente para poder responder um sim bem sincero.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Sobre o tempo e o coração

 


Sobre o tempo e o coração


Eu desejo o tempo certo 

não o oposto do incerto,

mas aquele que me diz seu sim


O que sopra encantamento 

mesmo que no desalento 

faça-me provar o que é melhor 


Que me alinhe ao momento sob a luz do entendimento que faz voltar ao pó  as ilusões


Sou do tempo um resultado, 

inocente ou ser culpado, não, não cabe aqui juízo algum


Bem melhor é ser presente, nunca dele ser ausente, pois ele se vai sem se despedir


Porque o tempo não se prende nas esquinas das quimeras 

nem se rende à voz da imposição 


Não espera os distraídos, nem perdoa  os seus conflitos

e vai sem perguntar se já curou


Porque o tempo é implacável, 

faz do medo um insondável, 

faz ruínas, traz a escuridão 


Mas o tempo desconhece, nem de longe reconhece 

o poder que tem o coração 


Há quem diga que a verdade cedo ou tarde nos invade 

frente a frente o tempo e coração 


Sem efeitos, sem disfarces, sem excesso, sem vaidade, o puro estado do que já restou 


Um encontro entre as partes, 

os dois lados do embate 

que por fim terão que se entender 

Faz a conta do que vives, 

o que somas e divides 

sem temer o que vais encontrar


No final há uma pergunta, 

um olhar de quem escuta 

que não poderás mais evitar 

Deus em seu lugar de honra 

no altar de tua alma vai te perguntar: foste feliz?


Pe Fábio de Melo,scj


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Vem noite

 




.....


Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio. Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sozinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faze da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.

Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.


Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.


Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo.


Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.


Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares sem horizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo dorso da fera,

E acalma-o misteriosamente,

Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso e inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração...

Serenamente como uma brisa na tarde leve,

Tranquilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo nas tuas mãos

E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.


Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar.

Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul

Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.


30-6-1914

“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 155.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

 



O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.

Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.

O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.


Clarice Lispector A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Se te queres matar...




Se te queres matar, porque não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,

Se ousasse matar-me, também me mataria...

Ah, se ousares, ousa!

De que te serve o teu mundo interior que desconheces?

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...

Talvez, acabando, comeces...

E de qualquer forma, se te cansa seres,

Ah, cansa-te nobremente,

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,

Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.

Talvez seja pior para outros existires que matares-te...

Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado

De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,

Quando não são de coisas nossas,

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,

Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda

Do mistério e da falta da tua vida falada...

Depois o horror do caixão visível e material,

E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,

Lamentando a pena de teres morrido,

E tu mera causa ocasional daquela carpidação,

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...

Muito mais morto aqui que calculas,

Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,

E depois o princípio da morte da tua memória.

Há primeiro em todos um alívio

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...

Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,

E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Duas vezes no ano pensam em ti.

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...

Se queres matar-te, mata-te...

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...

Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera

As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.

És tudo para ti, porque para ti és o universo,

E o próprio universo e os outros

Satélites da tua subjectividade objectiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.

E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?

Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,

Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?

Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:

Torna-te parte carnal da terra e das coisas!

Dispersa-te, sistema físico-químico

De células nocturnamente conscientes

Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,

Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,

Pela relva e a erva da proliferação dos seres,

Pela névoa atómica das coisas,

Pelas paredes turbilhonantes

Do vácuo dinâmico do mundo...

26-4-1926
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 22.
 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

quinta-feira, 9 de junho de 2022

O tempo


A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Mário Quintana
 

quarta-feira, 9 de março de 2022

Difícil

 Dias difíceis. Não sei explicar, mas não tem sido fácil... Dias difíceis em uma época difícil.

Muitos podem olhar o que acontece conosco e afirmar não haver motivos para tristeza, angustia ou ansiedade... Olhar de fora é tão bom, não é? Não vivenciar o que passa em nós, o que foi enraizado em nós por anos e anos a fio até chegar no que somos hoje.

Alegrias, tristezas, sentimentos e sensações não compartilhadas, medos... Tudo que foi se tornando a base do que somos, gradualmente, ao longo de todos os anos.

"Seja forte". "Não se preocupe". "Viva um dia de cada vez". Tantas outras frases prontas que falam, melhor dizendo vomitam, ao menor sinal de compartilhamento do que sentimos. E a pior de todas "Tem gente em situação pior". Como poderia me sentir melhor, por ter gente em situação pior? O que melhoraria meu ânimo, minha vida sabendo que tem gente que sofre?

Hoje não há um belo texto, assim como não tem havido nos últimos tempos. Hoje é só um desabafo, diante de tantas mudanças, tanta ansiedade diante de tantos cenários que se desenham…

Por hoje só quero descansar.

Gratidão por passar por aqui. 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Girassol

Hoje envio essa música em homenagem àquela que tornou-se meu sol, minha guia e companheira.

E curiosamente, sendo nada ortodoxo, girassol foi a primeira flor que lhe dei.

"Hoje não me sinto só / O que sonhei chegou / Medo e tempestade não me cegam / Achei um Sol / Pra mim"






Quem diria de uma flor
Era a chave que faltou
Para abrir o coração
Trancado sem amor

Quem olhar pro céu vai ver
Nova estrela a brilhar
Tudo pode acontecer
E só acreditar

Num girassol
Que rompe a escuridão na claridade da manhã
Um girassol
Pra mim

Quem sonhar por uma vez
Terá asas pra voar
Viajar o mundo é
Mas vida encontrar

Quem quiser amar alguém
Tem que se amar também
No calor de cada um
Verdade sempre vem

Hoje não me sinto só
O que sonhei chegou
Medo e tempestade não me cegam
Achei um Sol
Pra mim

Num girassol
Que rompe a escuridão na claridade da manhã
Um girassol pra mim
Dia claro o Sol brilhou

Mais um inverno se passou
Paraíso é o teu olhar
E a vida sem parar
Quem quiser amar alguém

Tem que se amar também
No olhar de cada um
Procure de ter ver
Essa luz em nosso olhar

O que sonhei chegou
Medo e tempestade não me cegam
Achei um Sol
Pra mim

Num girassol
Que rompe a escuridão na claridade da manhã
Um girassol
Pra mim


Composição: Flávio Venturini.


 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Vazio

 Amanheci com uma sensação estranha. 

Um vazio estranho dominava todo meu ser. Mente vazia, e uma sensação de absoluta ausência de tudo, inclusive de mim mesmo. Olhei para os lados e nada. Nada mesmo. 

O quarto estava vazio, nem mesmo a cama da qual eu acabara de levantar estava ali. Em poucos passos percebi que toda casa estava vazia, nada nem ninguém. E eu estava tranquilo. Conforme eu andava, percebia que as próprias paredes perdiam sua materialidade. Em pouco tempo tudo a meu redor não passava de um imenso espaço vazio, como uma enorme sala de paredes, teto e piso brancos.

Sentei e deixei-me imergir naquela sensação que me acompanhava desde o despertar. Gradualmente comecei a me lembrar de vários momentos de minha vida, várias pessoas que conheci. Lembrei-me de você que está lendo, que eu posso conhecer, posso já ter visto, conversado ou não. Talvez todo contato que tenhamos tido tenha sido realmente por aqui: eu escrevendo, você lendo, comentando ou não.

E as lembranças se misturaram entre si, se misturaram com planos nunca realizados, com situações que nunca saíram do pensamento, projetos nunca saídos do papel. Em todo aquele espaço branco pintou-se uma tela de histórias, lembranças, planos, sonhos, todos misturados de uma forma que não consegui mais discernir o que era real ou imaginação.

Agora eu estava ali inerte, sem sentir meu próprio corpo como se eu fosse apenas toda aquela miscelânea de informações que ali estava passando naquela estranha tela branca. Por um momento acreditei que eu havia morrido. Sim, morri e toda minha vida estava passando diante dos meus olhos. Minha vida, meus sonhos, meus planos, as pessoas que conheci, as pessoas que deixei de conhecer, os caminhos que segui e aqueles que abandonei sem percorrer.

De repente ouço um barulho que me tira de todo aquele transe. Era como se algo arranhasse e rasgasse uma parte daquele espaço. Sim, era um arranhado, e eu conhecia aquele ritmo. Contudo, estava imóvel, não podia mover nem mesmo a cabeça para olhar. Pelo rasgo ele entrou, e atrás de si, o mesmo rasgo se fechou. Após observar-me, deitou-se a meu lado. E exatamente após ter deitado, cores invadiram as paredes, teto e chão. Cores aleatórias e disformes.

Custei a entender o que acontecia. Deitou a minha espera. Veio me buscar. Olhei bem para o alto e vi como um grande buraco de minhoca, e do outro lado ele lá, deitado em seu lugar habitual, dormindo. Entendi tudo. Deixou seu corpo descansando e veio me acompanhar.

Não me restava mais nada. Pela primeira vez desde que "acordara", fechei meus olhos e me deixei levar. Estava agora leve, não me mexia, não andava, mas meu corpo antes tenso estava relaxado e parecia levitar. Sem saber para onde estava indo deixei-me levar, e quando finalmente senti que parara, abri os olhos e já não sabia se voltara ou se estava em outro lugar.

Mas no alto ele dormia, como se nada houvesse acontecido. Se algo acontecera realmente.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Deus é pai



Quando o sol ainda não havia cessado o brilho

Quando a tarde engolia aos poucos as cores do dia

E despejava sobre à terra

Os primeiros retalhos de sombra


Eu vi que Deus veio a sentar-se

Perto do fogão de lenha da minha casa

Chegou sem alarde, retirou o chapéu da cabeça

E buscou um copo de água num pote de barro


Que ficava num lugar de sombra constante

Ele tinha feições de homem feliz, realizado

Parecia imerso na alegria que é própria

De quem cumpriu a sina do dia


E que agora, recolhe a alegria cotidiana que lhe cabe

Eu o olhava e pensava

Como é bom ter Deus dentro de casa

Como é bom viver essa hora da vida


Em que tenho direito de ter um Deus só pra mim

Cair nos seus braços, bagunçar-lhe os cabelos

Puxar a caneta do seu bolso

E pedir que ele desenhasse um relógio bem bonito no meu braço


Mas aquele homem não era Deus

Aquele homem era meu pai

E foi assim que eu descobri

Que o meu pai com o seu jeito finito de ser Deus

Revela-me Deus com seu jeito infinito de ser homem


Compositores: Padre Fábio De Melo

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O que é errado?

Um dia e pesquisas avulsas. Pesquisa uma coisa, que leva a outra, etc. Encontrei um site em que foi feita uma interpretação de alguns trechos bíblicos que o mal da sociedade moderna é a monogamia. Afirmavam que o amor  é algo grandioso para ser restrito e principalmente o sexo deveria ser livre, pois é algo natural e para o qual o ser humano foi criado, assim como dos demais seres vivos. Afirmam ainda que a monogamia foi um conceito criado e inserido na sociedade com fins de maior controle social.

Lendo os textos sem preconceito à ideia apresentada, é possível até achar os argumentos são bons, plausíveis, porém eles os argumentos e a ideia vão de encontro a diversos conceitos e preceitos, religiosos e sociais.

Levanto esse ponto nesse início de texto, não objetivando defender alguma ideia poligâmica, nem mesmo discutir ou criticar tais ideias. Apenas quero apresentar um exemplo de ideia difundida entre algumas pessoas que contrariam o que creio ser o pensamento de uma grande maioria. 

Não cabe aqui discutir o que é correto ou não, e sim perceber haver tanto que cremos, pensamos, tantos conceitos e preceitos que mesmo inconscientemente nos acompanham e ditam nossas ações. Há tanto que é socialmente aceite ou não... E há tanta gente que difunde ideias diferentes.  O certo e o errado acabam não sendo coisas opostas, mas apenas dispostas lado a lado, e com uma fina película entre eles

Há quem goste de relacionamento aberto, e sinta-se bem com isso. E até quem busque alguma base religiosa para isso, como acabei encontrando. Posso discordar, mas desde que não seja prejudicial a mim e respeitem minha opinião, não vejo problema que façam e pensem o que quiserem.

Seria bom se as pessoas agissem respeitando as crenças e convicções dos outros. Estaríamos num mundo melhor, mas infelizmente muitos querem impor suas posições, crenças…

Em minha opinião, a imposição de ideias sempre será um problema, e a maior culpada dos problemas no mundo.

Sonho com um mundo em que todos respeitem a diversidade de ideias, opiniões e opções.

Meu mundo desejado é utópico